Há muito tempo tenho sido atravessada por vivências que
provocam uma reflexão de como a exclusão, a negligência e a violência (sim,
violência não é só tapa e se estabelece em vários níveis) fundamentam
as relações que estabelecemos em sociedade. E em sociedade, quero dizer eu.
Quero dizer você. Quero dizer as outras pessoas.
Felizmente está cada vez mais em voga as
discussões/mobilizações que problematizam essas relações de exclusão sustentadas
pelas crenças de que existe um jeito certo de se relacionar afetiva e
sexualmente, em jeito certo de se portar, um corpo certo, um tom de pele certo,
um bairro certo para se nascer, um jeito certo de ser mulher, um jeito certo de
ser homem, um jeito certo de devir...
Esses exemplos são formas muito antigas, muito opressoras, e
pra mim, muito explícitas de exclusão. Mas ultimamente, tenho pensado em uma
forma sutil e disfarçada que achamos para excluir e negligenciar.
Ao longo da vida (e acredito que em alguns momentos
ainda seja assim) acreditei que a única forma de desconstruir esses padrões
seria amando. Aquela ideia de que aah o amor dá jeito em tudo. Taí, acredito
que deve ter alguma verdade nisso. Mas a minha dúvida tem sido: como nosso amar outra pessoa também exclui, também negligencia, também oprime.
Penso que existe um quê de não amorosidade, de não abertura,
no movimento de escolher pessoas específicas para direcionar o meu afeto.
Quando escolho A.Q.U.E.L.A.(S) pessoa para ser minha amiga, quando escolho ser aberta ao
amor apenas na presença dessa(s) pessoa(s), eu estou (des)escolhendo todas as outras. Ok, não dá pra gente se
relacionar com todas as pessoas desse mundo, e a ideia não é essa (sempre
importante explicar que expor uma ideia não é defender o seu extremo). Acredito
sim que no momento que a gente se relaciona com alguém, é importante estar 100%
presente com essa pessoa, em uma relação de entrega e troca no limite daquilo
que conseguimos oferecer e receber. Mas quando escolhemos uma pessoa, quando
escolhemos os nossos círculos e grupos de relação, nós negligenciamos, nós
excluímos outras pessoas, excluímos quem talvez esteja, nesse momento específico, demandando o afeto que estamos direcionando
apenas àquela minha melhor companhia/paceira/amiga/colega do universo inteiro. E talvez aquela sua
melhor amiga do universo inteiro nem esteja em um momento da vida onde sua
frequência afetiva esteja das mais congruentes com a sua. Talvez há um mês
atrás fosse uma relação super nutritiva pra vocês. Talvez esse mês já não
seja.
Esse amar a pessoa X e não a pessoa Y fragiliza-se polo hábito de permitir apenas a manifestação daqueles afetos aceitáveis.
Eu amo minha parceira, mas ultimamente tenho sentido raiva dela.
Mas as vezes, essa raiva já
encontra uma resistência tão grande que se transforma em outra coisa mais
aceitável. Uma raivazinha aqui que se transforma em cuidado excessivo, uma mágoa que
se transforma em críticas sutis à outra pessoa, um ciúme que se transforma em controle. E essa é outra armadilha desse nosso amar: não permitir a entrega que reconhece e
valida a fluidez do que possa vir da relação.
Daí já vem aquela outra armadilha... O nosso olhar que
congela as pessoas. E como é esse congelar a outra pessoa, a gente se
pergunta? É muito simples e frequente nas nossas relações: conhecemos uma pessoa e pautamos todo o nosso relacionamento na ideia estática que construímos dela. Como funciona isso?
Eu conheço aquela amiga há 4 anos. Nessas férias eu quero fazer uma trilha na chapada e tô pensando em quem chamar pra dividir a gasosa da viagem. Eu me lembro da amiga de 4 anos. Imediatamente penso no conceito que EU construí nesse pequenino tempo de relação, mas que pra mim é super válido, afinal, nossa relação é muito intensa, aberta e sincera: a fulaninha não cabe no perfil dessa viagem, pq EU SEI que a fulaninha gosta de conforto, ou gosta de cidade, ou não gosta de mosquito, ou é tão desastrada que vai pôr fogo na vegetação da trilha.
Pronto!
Acabei de congelar a fulaninha no meu conceito baseado na nossa relação tão
amorosa e fraternal. Não damos espaço, muitas vezes, no nosso afã de “ó tão
sabida e esperta que sou”, para a fluidez que todo mundo tem. Inclusive essa
minha amiga de 4 anos. Por mais que doa em mim, essa amiga flui
na vida, se transforma.
Não damos espaço para as mil possibilidades de ser que as pessoas que encontramos e nos relacionamos na vida tem. Na liberdade de escolha, de transformação, de desconstrução, que os outros (e nós também!) temos nessa vida tão dinâmica. Na liberdade que nós (e as outras pessoas) temos de estarmos abertas à afetividade diária.
Não damos espaço para as mil possibilidades de ser que as pessoas que encontramos e nos relacionamos na vida tem. Na liberdade de escolha, de transformação, de desconstrução, que os outros (e nós também!) temos nessa vida tão dinâmica. Na liberdade que nós (e as outras pessoas) temos de estarmos abertas à afetividade diária.
Engraçado como achamos comum direcionar nossa afetividade àquela amiga da pré escola, e recusar a afetividade à mulher que conhecemos no parque. Esta mulher é menos merecedora* do meu afeto que aquela amiga?
Por que escolher direcionar o meu afeto dentro desse círculo
e limitá-lo quando fora?
*faltou uma palavra melhor