domingo, 26 de janeiro de 2014

O cheiro.

 Eu não conhecia o seu cheiro. Mas era bom, me confortava. 
Era de paz.
Naquele momento era paz. 
Mas ao fim desse abraço foi inquietude.

Já havia tempos que não via essa amiga. Sentia muita saudade, queria vê-la, conversar, rir, rir muito. 
Já estava cansada de tanta saudade e promessas de que "logo a gente se vê". Pois bem. Nos vimos. 
Ao certo, esse encontro fora muito bom. Tenho certeza que sim. Mas não me lembro. Não foi esse o encontro que me marcou.
Me afetou um encontro inesperado. O cheiro. O abraço. O conforto. A alegria. O medo do reconhecimento desse afeto.

Não esperava ver você. Ora, essa querida amiga me puxava, me levava a outro cômodo em que duas pessoas inesperadas... nos esperavam. Estavam lá, os dois, conversando.  
Eu me surpreendi. Não esperava vê-lo. Mas já que vi... às convenções.
Nos abraçamos.
"Nossa, que saudade. Quanto tempo!"
"Também saudade."

Então o cheiro. 
Não o sentira antes. 
Estranho. 
Não sabia qual seu cheiro, e ao saber não o conhecia. Mas ao sentir, tive certeza de que esse era o seu cheiro. Era o cheiro certo. Ele não estaria em outro lugar senão em você. Gostava.
E esse abraço se estendeu. 
Foi eterno. 
Foi certo.
Meu coração disparado, pulando de alegria. 
Era alegria. 
Era paz. 
Era conforto. 
Era bom.
Tinha medo também. Um medo de que "céus! não há como não sentir que esse coração está demasiadamente disparado."
Mas de algum modo, veio a certeza de que você não percebera. 
Havia a possibilidade de não distinguir de qual coração vinha tal agitação.

Era preciso se afastar. Duas pessoas nos olhavam. Duas pessoas que sabiam não haver ligação que justificava tal encontro.
Mas você também estava confortável. Você também sentia paz.

Onde termina a falta de empatia e começa a violência?

Saio de um centro de saúde pública aflita. Não foi a fila. Não foi a demanda. Não foi sequer a presença do adoecer. Aliás, o meu olhar me disse sobre um adoecimento cruel, violento, mas sutil.
A aflição gerada pela fala. Não a fala de um@ paciente, mas de uma profissional. 
Saíra do ambulatória e foi-se reunir às colegas. O caso era de uma criança. Um capeta. C-A-P-E-T-A. Eu lhe disse: “você não vai ficar quieta? Senta agora! Tem que sentar”. Pensa, gente, numa criança difícil. Veio com a avó. A mãe usuária de crack. Aquelas famílias sabe? Pois é. A mãe: negra. NEGRA, PRETINHA.
As últimas 3 palavras não foram pronunciadas em caixa alta. Não foram ditas em alto e bom som. Apesar de terem sido ditas e frisadas por três vezes, foram apenas balbuciadas, para que apenas as 4 pessoas presentes na sala conseguissem ouvir o que realmente estava sendo dito. 
Pois que tivesse gritado. Deveria. Deveria ter gritado: negra, preta! Deveria ter gritado o horror que esse sussurro e tremular dos seus lábios adoecidos estavam dizendo ali, em um centro de saúde público, de uma profissional que fala do acolher, do contato empático, da saúde mental, da humanização! Céus, da humanização!
Pois deveria ter gritado, pois assim, teria tido a oportunidade de me permitir também gritar respostas a uma conversa que não havia sido convidada, mas que infelizmente havia presenciado. Gritado o horror! Gritado a denúncia à violência simbólica que houvera presenciado. Ao racismo, sim ao racismo que essa garota certamente negaria o ato. Mas sim minha cara, tu és racista! Poderias ter dito tudo ao sair daquele atendimento:
A mãe: alta
A mãe: navegadora
A mãe: com problema de vista
A mãe: gaúcha
A mãe: astronauta
A mãe: ausente
A mãe: trabalha muito

Mas não, dissestes:
A mãe: negra. 

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Créditos do título: http://alexcastro.com.br/alex-voce-preferia-uma-filha-gay-ou-ladra/